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S. Fujii & Otomo Y. - Perpetual Motion

António Branco, Jazz.pt

 

Figuras maiores da improvisação japonesa do nosso tempo, a pianista Satoko Fujii e o guitarrista e manipulador de eletrónicas Otomo Yoshihide têm atrás de si monumentais discografias. “Perpetual Motion”, com selo da Ayler Records, é a sua primeira gravação em duo, o que, desde logo, é motivo para celebração. A jazz.pt já a escutou.

Fica claro que o título para a primeira gravação conjunta, “Perpetual Motion”, com chancela da Ayler Records de Stéphane Berland, não poderia ter sido melhor escolhido. Esta noção de movimento perpétuo transparece logo aos primeiros segundos, que parecem decorrer de toda uma imensidão sonora prévia. Tal como o ocaso do álbum parece ser o princípio de algo, mais do que propriamente epílogo ou conclusão. Como bem interroga John Sax nas suas notas de apresentação: «Terá esta música um começo ou um fim?» O que temos é tudo o que acontece entre estes dois momentos, separados por pouco mais de 47 minutos. Para garantir este movimento, os dois músicos dialogam de forma profunda e telepática. Quando um propõe um caminho, o outro explora-o, ainda que logo altere o rumo. À distorção de Yoshihide, Fujii responde com as entranhas do piano; as abstrações ruidosas são contrapostas pelo piano denso; a massa sonora é tal que a espaços se torna virtualmente impossível destrinçar quem está a fazer o quê. Apetece citar um dos mais belos haikus de Matsuo Bashô (1644-1694): «Oh estes bancos de nevoeiro / sempre a tentarem mostrar / novas paisagens!»

Quando ouvimos os primeiros sons de “Perpetual Motion” ficamos com a sensação de que algo já vem de trás, de muito de trás, que nada começou ali e que somos nós que só agora entramos nesta viagem… Os nossos sentidos são postos à prova a cada instante; ouvimos violoncelos, sinos, caixas de música, buzinas de navios… ou não? Nada é o que parece; as técnicas pouco convencionais empregadas não são um fim em si mesmas, mas um meio para lograr um propósito sonoro que nos submerge numa realidade paralela… Melodias longínquas brotam sem aviso, mormente do piano, ora suave, ora tempestuoso, mas também de uma guitarra mutante, para tudo se tornar caótico e logo voltar ao estado inicial. Em “Perpetual Motion II” tudo muda, com os dedilhados suaves de Yoshihide e o piano cristalino de Fujii concorrendo para uma atmosfera camerística, com passagens de uma beleza tão solene quão inquietante. Até que voltamos a estar sob céus de chumbo, opressivos, remetidos que somos a uma peça na engrenagem universal, para tudo depois se esvair em silêncio.

“Perpetual Motion III” é feita de notas esparsas de piano que ganham intensidade rítmica acicatadas pela abrasividade de Yoshihide. A encerrar, “Perpetual Motion IV” começa serena, com piano e guitarra a interagirem em diferentes planos, com episódios de concordância e outros de confronto, de partilha e de contraste. Uma majestosa tranquilidade mergulha-nos na noite dos tempos, momento ideal para voltarmos a Bashô: «Polvilho os meus ouvidos / com incenso / e assim ouço melhor o cuco».

“Perpetual Motion” é uma jornada sonora, sem tempo ou espaço, que tem a sublime capacidade de nos reduzir àquilo que verdadeiramente somos.