Scott Fields Ensemble - Songs of Steve Dalachinsky

António Branco, Jazz.pt

 

Steve Dalachinsky (1946-2019) era um homem do renascimento, tantas eram as artes que cultivava: a poesia, a música, as artes plásticas, o cinema. O novo disco do guitarrista e compositor norte-americano Scott Fields, baseado na Alemanha, parte das palavras de Dalachinky e confere-lhes toda uma nova dimensão. Tem selo da Ayler Records e a jazz.pt já o escutou.

Num artigo publicado no New York Times, em 2019, Neil Genzlinger debateu-se com a dúvida do que chamar a Steve Dalachinsky (1946-2019). Poeta? Sim, seria provavelmente essa a escolha mais óbvia, tendo em conta os livros que publicou, as sessões públicas de leitura – muitas vezes acompanhadas por música, nos clubes do jazz mais estimulante de Nova Iorque e arredores –, as distinções que recebeu ao longo da vida. Mas era o próprio quem fugia do termo. No documentário “Spotlight on Steve Dalachinsky”, de 2013, vemo-lo a dissertar sobre o assunto, se merece ou não ser apodado de poeta, numa excursão reflexiva que termina com ele dizendo, «Esqueci-me da pergunta.» Num artigo de 2016, a The Villager citou-o dizendo uma coisa e o seu contrário «Não gosto sequer de ser chamado poeta», mas também «Vamos pô-lo desta forma: sou um poeta.» Personagem idiossincrático, Dalachinsky não gostava que engavetassem o que fazia. A sua viúva, Yuko Otomo, disse a Genzlinger que «no final da vida ele tenha percebido que não era bom em nada além de escrever poesia.»

Mas Dalachinsky era também um artista plástico, com trabalho exibido em galerias. E alguém profundamente apaixonado pelo jazz, sobretudo o de feição mais aventureira, o free jazz que tanto lhe dizia. Muitos foram os músicos que lhe pediram que escrevesse as notas de capa dos seus discos. Havia críticos que diziam que se o vissem num concerto, era porque se iria ouvir boa música. Era figura omnipresente na downtown nova-iorquina, em particular no Soho, onde residia. Mas o seu amor por qualquer coisa “criativa e inspiradora” ia muito além de qualquer categoria artística; estava aberto a muitas coisas, das artes visuais ao cinema, literatura e, acima de tudo, à própria vida. Steve Dalachinsky estava por isso a fazer o que gostava no dia 14 de setembro de 2019, no museu de arte de Islip, em Long Island, onde leu alguns dos seus poemas após ter assistido a um concerto da Sun Ra Arkestra em Manhattan. Pouco depois, foi acometido de um ataque cardíaco e de uma hemorragia cerebral, tendo parado de resistir no dia seguinte. Tinha 72 anos.

Foi este universo multímodo que motivou o guitarrista e compositor Scott Fields (Chicago, 1956), radicado na Alemanha; inspirado pela força das palavras de Dalachinsky, compôs aquilo a que poderemos chamar um conjunto de lied, na esteira (longínqua) da tradição schubertiana e de outros compositores clássicos que cultivaram a forma, como nota acertadamente Yuko Otomo em notas de apresentação. O que escutamos em “The Songs of Steve Dalachinsky”, editado pela Ayler Records de Stéphane Berland, são poemas duais que carreiam um conjunto de elementos poéticos/musicais imbrincados, com uma espécie de fio de Ariadne orientar toda a jornada. A voz humana (Barbara Schachtner é exemplar), as respirações, a riqueza tímbrica da paleta instrumental fundem-se em atmosferas muito interessantes de sons e palavras. Esta coleção de seis peças foi estreada em Colónia, em dezembro de 2016, três anos antes da morte de Steve Dalachinsky. Ele e Fields conheceram-se num festival em Nova Iorque onde Steve atuava como MC. (Numa nota pessoal, foi nessa qualidade que o conheci e troquei as únicas palavras com ele, na edição de 2006 do Vision Festival, no Orensanz Center, onde leu poemas integrado num grupo de tributo a John Coltrane.) Dalachinsky estava vasculhando a mesa de CD e merchandising e tinha na mão um CD de Elliott Sharp a solo. Fields apontou para uma pilha de CD da dupla Sharp-Fields e disse-lhe que sim, que Sharp era ótimo sozinho, mas com Fields tinha acontecido magia. Só 45 minutos depois, quando Steve se aproximou para apresentar a banda, ele percebeu que o estranho que se referia àquelas gravações era... o próprio Fields.

Vários anos depois, quando Scott escreveu ao poeta pedindo-lhe autorização para compor música baseada nas suas palavras, Dalachinsky concordou prontamente, sem mencionar o episódio. Fields disse-lhe que era sua intenção compor música que se distanciasse das performances pelas quais ele era conhecido: palavra falada com free jazz, muitas vezes completamente improvisado. Fields considerava que Steve tinha esse género cristalizado e preferiu seguir noutra direção. Dalachinsky enviou dezenas de poemas e deixou que fosse Fields a escolher. O tratamento que o guitarrista lhes aplicou mostra como as palavras de Dalachinsky admitem múltiplos ângulos de abordagem. Steve não pôde comparecer à estreia, mas viu uma compilação em vídeo da apresentação. Scott Fields trabalha com estes músicos há quase duas décadas, exceto Schachtner. Embora alguns dos músicos tenham associações tangenciais ao jazz, o que se escuta pouco terá a ver com o free jazz da cena de Nova Iorque. Movem-se sobretudo nas áreas da música clássica e da música contemporânea; o flautista Norbert Rodenkirchen é também um intérprete conhecido e uma autoridade na música medieval. Todos são músicos experientes, que se movimentam igualmente à-vontade no material formal como nas improvisações balizadas pelas restrições tonais, rítmicas e estruturais.

Scott Fields reforça em “The Songs of Steve Dalachinsky” aquilo que reconhecemos na sua extensa discografia, com quase quatro dezenas de títulos: uma apetência especial para compor tendo um conceito em mente. [Bem representado no catálogo da Clean Feed, com oito álbuns, destes avultam, a estes ouvidos, “Beckett” com o seu Ensemble, em 2007, o magnífico “Scharfefelder”, de 2008, em duo com Elliot Sharp, “Fugu” (2010) e “5 Frozen Eggs” (2012).] A música equilibra uma dimensão cuidadosamente gizada com a espontaneidade das improvisações, em que o coletivo se sobrepõe ao individual, não há solos, prevalecendo uma relojoaria sonora delicadamente estruturada. “Prelude” traz sons de multidão, helicópteros, buzinas, vozes, o bulício de uma cidade que nunca dorme. Em “Rear Windows”, as palavras de Dalachinsky, cantadas pela voz operática por Barbara Schachtner, surgem acolitadas por intervenções instrumentais esparsas, em especial clarinete baixo e tuba – que desenham o motivo-base (flauta, guitarra, acordeão e eletrónicas assomam). “Interlude”, o primeiro de vários, traz novas vozes, fantasmas, ruídos urbanos. Em “Spurlock Reliquaries” a voz de Schachtner surge no início a desenhar umas figuras vocais sem palavras, próximas daquelas que já ouvimos a Sara Serpa. Acordeão, flauta e clarinete baixo – e a guitarra a gerir de perto – envolvem as palavras. A música é rarefeita e frágil.

“Gone White Light” o acordeão fornece a base para um belo arranjo de pendor camerístico, com uma judiciosa gestão de todas as pedras deste inusitado xadrez instrumental. Novo interlúdio dá lugar a “Richard Wilbur´s Spine”, com a sua serenidade inquietante, numa tensão latente que nunca se resolve. A flauta encantatória, à frente dos demais instrumentos, desafia a voz humana que diz: («I stare into richard wilbur’s spine / admittedly never having read richard wilbur nor hearing richard wilbur read / i try to imagine his voice & / come up with something between husky dark / & rich then i add a thick brooklyn accent / oh that’s my voice i’m hearing.») Um interlúdio mais e chegamos à bem-humorada “My Minutes”, com todos os instrumentos a contribuírem para o cômputo sonoro, num jogo onde não sobressaem protagonistas. («I’d love to skydive / but i don’t want to be an elephant caregiver / i’m not sure i want to be a gospel singer / but i know i wouldn’t want to be a / snakecharmer.») De “With Shelter Gone”, a peça mais extensa, com quase 14 minutos de duração, avultam as articulações entre sopros agudos e graves, a guitarra alienígena a pontuar, o acordeão etéreo, funcionando como personagens de um jogo teatral que vai evoluindo ao sabor das palavras. Em “Conclusion” voltam as sirenes, as buzinas, as vozes de crianças, a vida urbana condensada em 50 segundos.

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